Um arranjo peculiar que expõe desigualdades e desafia tanto o discurso da universalidade quanto a promessa de eficiência privada.
Do desenho constitucional e as rachaduras do SUS
O SUS nasceu em 1988 como um dos maiores experimentos de universalidade do planeta, prometendo atendimento de ponta a ponta para todos os brasileiros, sem distinção de renda. Em números recentes, são 1,2 bilhão de consultas ambulatoriais, 11 milhões de internações e 95 % de cobertura vacinal nacional — um feito de equidade e capilaridade.
Ainda assim, cada etapa vencida na implementação desse portento, esbarra em um gargalo: filas que se estendem por meses, hospitais sem equipamentos e um orçamento que, em 2022, não passou de R$ 150 bilhões, metade do patamar que especialistas consideram mínimo.
Essa dicotomia entre princípios constitucionais e subfinanciamento crônico expõe a contradição do discurso dominante: afinal, o “direito universal” soa nobre, mas esbarra no cálculo frio de R$ 1.200 gastos por habitante no SUS contra R$ 3.000 em planos privados.
É a lógica da pós-verdade fiscal — convencemo-nos de que “não há dinheiro”, enquanto assistimos à subsídios outros, em boa parte voltados a atender apenas aos acionistas enquanto acenam aos postos de trabalho, recebendo aporte sem questionamento.
O setor privado: eficiência que fala alto, mas nem sempre ouve
Por seu turno, com cerca de 50 milhões de usuários em 2021, os planos de saúde se apresentam como alternativa ao atraso público. Entre classes média e alta, a promessa é de agilidade e conforto, e parte do mercado — em especial operadoras filantrópicas — se debate para manter margens diante do aumento de 15 % nos custos médicos.
Estudos de pesquisadores da USP mostram que pequenos provedores, que eram 80 % de todas as operadoras em 2018, sobrevivem a duras penas, recorrendo a dívidas de curto prazo para bancar investimentos.
Na mesma toada, alimenta-se a ideia de que o privado “desafoga” o SUS.
Em 2022, cerca de 300 milhões de consultas foram absorvidas pelas redes particulares. Mas esse mito meritocrático — de que quem paga menos pressiona menos o sistema público — se choca contra a realidade do ressarcimento: apenas 49 % dos mais de R$ 8 bilhões devidos pelas operadoras foram efetivamente pagos desde 2001. Em 2023, deixaram de retornar R$ 2 bilhões que poderiam reforçar leitos e equipes.
Ressarcimento: arma de dois gumes
A Lei 9.656/1998 tentou criar um mecanismo de equilíbrio: operadoras privadas devem compensar o SUS quando clientes utilizam o serviço público. Mas a baixa efetividade — apenas 30 % das notificações são quitadas sem disputa — revela frágeis capacidades de fiscalização e resistência corporativa. Para cada internação não ressarcida (custo médio de R$ 2.500), pesa sobre o contribuinte a conta de um débito que nunca foi liquidado.
Operadoras retrucam que o ressarcimento eleva o custo operacional e que a judicialização e inflação médica penaliza a rentabilidade do setor.
Esse choque de versões empresta ao debate um viés de disputa, em vez de um projeto de cooperação. Enquanto a ANS e o Ministério da Saúde flertam com propostas de fundo comum, a fragmentação de bases de dados e a falta de coordenação emperram qualquer avanço.
Convergência imperfeita: potencial e limites de um arranjo híbrido
Não se pode ignorar que, em princípio, público e privado poderiam se reforçar. O SUS garante cobertura básica a 75 % da população — mais de 150 milhões de pessoas que não teriam atendimento em áreas remotas sem ele. Já o setor privado testa inovações como a telemedicina, com 10 milhões de consultas virtuais em 2022, prática que o SUS só começou a adotar em escala restrita no ano seguinte.
Mas essa complementaridade exige regulação firme e vontade política, não ajustes pontuais. Enquanto não se alinham interesses privados ao bem comum, a hegemonia cultural do mercado persiste: saúde vira mercadoria, e o discurso da “inclusão” se limita a quem cabe no perfil do plano.
Entre privilégio e necessidade: a distribuição dos riscos
Dados de 2023 revelam um retrato vívido das disparidades: 70 % dos usuários do SUS estão nas faixas de menor renda, contra 60 % de clientes de planos nas classes A e B. O choque de classe se expressa em quem espera horas por uma vaga de UTI e quem troca um voo para garantir atendimento particular.
Equilibrar esse desequilíbrio demanda um novo pacto político da sociedade para o setor: ampliar o orçamento público com base em ressarcimentos efetivos, integrar bases de dados, simplificar o mecanismo de cobranças e, sobretudo, reconceber o SUS não como “despesa” mas como investimento civilizatório.
Em cada evidência, escuta-se a tensão entre um ideal constitucional e a lógica do mercado. O desafio não é escolher um lado, mas forjar um novo entendimento: saúde como direito inalienável, não como prêmio de consumo.